Sair ou não sair – Eis a questão
Por Alice Vieira
Há um conto de um autor húngaro, de que não sei o nome, (mas que pertence a uma antologia de contos húngaros, traduzida pelo meu amigo Ernesto Rodrigues), de que me tenho lembrado muito nestes últimos tempos.
É um conto brevíssimo.
A história de uma mulher presa há muitos anos e que, de repente, foi posta em liberdade. Ela vivia na prisão com uma filha pequenina, que nunca conhecera outra vida.
Então, uns dias antes de ser posta em liberdade ela vai com a menina perto do arame farpado e diz-lhe que vão para casa, e que ela vai ter um quarto só para ela, e brinquedos, e vai poder brincar com eles ,e correr pelo jardim.
–E a casa é longe daqui, mãe?
–Sim, minha querida, muito longe.
— E vamos viver para lá?
— Claro, é a nossa casa.
A menina ficou em silêncio durante algum tempo.
–Mãe…
–Sim, querida
— E pode-se fugir de lá?
Pronto. A história é esta.
O que acontece é que, depois destes confinamentos todos, eu acho que estou a sentir o mesmo-—mas ao contrário… Pronto, está tudo resolvido, já podemos ir para a rua, viajar….mas… não podemos voltar para casa?
Dou comigo a querer estar em casa. A gostar de estar em casa.
Eu, que às 8 da manhã já estava na rua e andava sempre para aqui e para acolá, e apanhava comboios e camionetas…
Às vezes abro o frigorífico para ver se é preciso alguma coisa, já vou a abrir a porta, mas depois paro e digo:
–Para hoje ainda chega, saio amanhã.
Invento tudo para não ter de ir à rua.
Claro que há muitas coisas de que tenho muitas saudades.
Tenho muitas saudades de não ter os meus netos comigo e enchê-los de beijinhos e abraços—cá em casa.
Tenho muitas saudades dos jantares que eu fazia para as minhas amigas, em que nos divertíamos imenso até às tantas –cá em casa.
Tenho muitas saudades dos lanches com as minhas “Fillipinas“ (um grupo de antigas colegas do Liceu Filipa de Lencastre)—cá em casa.
Pareço os Deolinda naquela cantiga “agora não, que é hora do almoço/ agora não, que é hora do jantar/agora não, que me dói a barriga/ agora não, dizem que vai chover/agora não, porque joga o Benfica”, etc…etc…—tudo desculpas para ficar em casa.
Não há dúvida, a gente habitua-se a tudo.
Mas pronto, espero muito sinceramente que o confinamento acabe no fim do mês.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira